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Karla Muniz, uma mulher transexual

Atualizado: 3 de dez. de 2019






"Comer doce sem se lambuzar, não dá"



Às 7 horas colocamos os equipamentos no carro e iniciamos nossa viagem rumo ao município de Chapecó, em Santa Catarina, localizado a 121 quilômetros de Frederico Westphalen. Ainda meio perdidos na cidade, marcamos de encontrar nossa fonte em frente a um supermercado. Uma mulher vem atravessando a rua em nossa direção com um sorriso no rosto, é Karla Muniz.


Depois de abraços e apresentações, caminhamos até sua casa. Durante o percurso, já percebemos que Karla não é de meias palavras e o sotaque já denuncia que ela não é da região sul do país. Na residência, quem nos recebe são os cachorros. Karla trabalha, atualmente, como esteticista animal, no ramo de banho e tosa.


Enquanto organizávamos os equipamentos para a gravação, a primeira presidente da União Nacional LGBT de Chapecó, fazia escova nos cabelos e uma maquiagem no rosto. Karla sai do quarto com um batom rosa nos lábios. Estávamos prontos para começar.


Com 43 anos, a transexual já deixa claro no começo da entrevista que o sexo sempre foi um tabu dentro de casa e, na escola, nunca foi tema de muitos conteúdos.


— Sou de origem nordestina, sou filha de baiana com paraibano, então até pela região, falar de sexo é um tabu. É uma coisa muito fora da realidade familiar, como se ninguém fizesse sexo. Na época de escola se falava pouco, só sobre anatomia, mas pouca abordagem. Não se discutia em lugar nenhum, muito menos em casa. Era quase um crime falar sobre sexo em casa.


A militante conta, com segurança, que aos 5 anos já percebia que era diferente dos irmãos. Como assuntos envolvendo a sexualidade e o gênero não eram discutidos ao seu redor, Karla tinha um monte de perguntas, mas não tinha respostas. Por volta dos 15 anos ela percebeu que as coisas começaram a mudar.


— É uma coisa muito intensa, não tem como eu te descrever como a gente se reconhece trans. É uma coisa que não dá para explicar. A tua mente é feminina o tempo todo. As suas ações são femininas, mas o teu corpo não colabora com aquilo que você pensa, a forma como você age.


"A tua mente é feminina o tempo todo."

A partir daí vieram as punições por parte da família. Karla conta que precisava ouvir comentários como “Isso é coisa de menina”, “anda direito”, “fala igual homem”. A cobrança fez com que ela saísse de casa aos 16 anos.


— Eu saí de casa e falei “eu vou ser eu”.


Transição

Em uma cidade vizinha, onde não conhecia ninguém, Karla conseguiu um emprego como doméstica e decidiu começar o processo de transição. A falta de referências e informações levaram a ativista a procurar a ajuda de um amigo que já havia começado a tomar a medicação. Ele que indicou a Karla qual remédio tomar e por quanto tempo.




— Dói, dói muito. Não a injeção, mas o efeito. Foi quando a pele começou a esticar, a glândula mamária começou a esticar, começa a formação da mama, doía muito.


Karla conta que parte de seu salário ia para o tratamento alternativo que fazia por conta própria, sem saber de efeitos colaterais. Em 1992, com 16 anos, os seios começaram a surgir e Karla resolveu mudar o guarda-roupa e usar peças femininas.


— Um dia eu fui pra boate vestida de mulher, pela primeira vez, com muito medo de passar por violência. Se hoje a sociedade não se acha preparada, imagina há 30 anos atrás...era pior ainda. As pessoas não tem que estar preparadas para isso, elas só tem que aceitar e se não aceita, respeitar.


A partir da transição, Karla conta que teve que encarar a responsabilidade de ser trans. Para ela, o papel de uma mulher trans na sociedade é desmistificar. Além das piadas e preconceitos, a violência também já fez parte de sua vida. Ela passou por três abusos quando criança e, logo no início do período da transição da hormonioterapia, Karla foi estuprada.


— Isso não me impediu de ser quem eu era. Não me impediu de seguir em frente. Então, fico feliz que hoje, em casos de estupro, temos acesso a profissionais da psicologia, que estão sempre dando suporte para as vítimas. Naquela época não tinha, a gente aguentava calada. Isso não me diminuiu em nenhum momento. Estou aqui hoje.


Passar pelo processo de hormonioterapia foi difícil. Karla descreve que sofria com os efeitos colaterais, tinha muito sono e muita fome. Além disso, seu psicológico também começou a mudar. Ela conta que ficou muito emocional e sensível. Na parte física, a ativista percebeu que perdeu parte da sua força e que alguns órgãos foram se atrofiando, a voz ficou mais aguda e as curvas começaram a surgir.


O processo com os hormônios é contínuo, se optar por parar de tomar os remédios os efeitos desaparecem aos poucos. Karla explica que algumas transexuais, como ela, iniciam o processo hormonal e depois decidem realizar a cirurgia de redesignação sexual e, assim, adequar “mente, corpo e sexo” ao qual se sente.


Karla esclarece que, para realizar a mudança de sexo, é necessário buscar um dos 10 serviços habilitados para processo de mudança de sexo no Brasil. Depois, durante dois anos, a paciente é acompanhada por uma equipe multidisciplinar e realiza diversos exames laboratoriais e tratamentos psicológicos. Tudo para garantir que a paciente possui condições psicológicas para realizar a cirurgia. Para ela, a cirurgia é uma mutilação.


— Eu cheguei a dar entrada nesse tratamento, na época, onde eu não aceitava o meu órgão biológico. Eu tinha uma aversão ao meu sexo biológico. Nesse período de dois anos fazendo psicoterápico, eu mudei de ideia. Eu não precisava fazer a cirurgia pra me sentir mulher. Então, eu optei por não fazer a cirurgia. Hoje eu vejo que meu sexo faz parte de mim. Eu gosto do sexo que eu tenho, mas isso não me diminui como mulher.

"Hoje eu vejo que meu sexo faz parte de mim."

Antes do processo de redesignação, Karla não se tocava porque, segundo ela, os hormônios tiravam seu libido. Foi aí que decidiu interromper o procedimento.


— Eu gostava de ter orgasmo. Foi aí que optei pela não transição. Tipo assim, eu gosto de ter orgasmo, eu gosto de ter prazer. Eu me sinto bem tendo prazer, eu sou humana. O prazer faz parte da nossa vida. O orgasmo faz parte do corpo humano. Hoje eu me aceito como eu sou, com meu órgão. Não me atrapalha em nada.


Karla ainda deixa um recado: “Se masturbar é bom, conhecer o corpo é bom, gozar é bom. Eu falo que quem não goza tem problema. Faz parte da fisiologia do corpo, da alma. A pessoa que goza é feliz, isso eu tenho certeza”. Em relação a isso, a fisioterapeuta Caroline Helena Lazzarotto de Lima, explica a importância da masturbação para que a mulher tenha controle sobre o que deseja.


— É importante que a mulher se conheça desde a masturbação, a sua anatomia, o que é ter um orgasmo, não ter um orgasmo. Se empoderar nesse sentido, de serem donas dos próprios corpos e se conhecerem para que tomem escolhas saudáveis para elas —, destaca Caroline.



Uma trans hoje

Passar por inúmeras provações é comum para pessoas trans. Quando questionada sobre sua saúde mental, Karla diz que nem sabe se teve depressão porque só pensava em sobreviver. Segundo ela, o número de suicídios entre travestis e transexuais é decorrente de uma não aceitação social e familiar.



— O Brasil é o país que mais mata travestis e transexuais no mundo. Em contrapartida, o Brasil é o que mais consome pornografia transexual. A mesma população que mais consome é a que mais mata.




O desenrolar da sexualidade envolvendo a comunidade LGBTQI+, como também abordamos no relato de Iara, atravessam questões psicológicas. Como mulher transexual e ativista, Karla não só compartilha da sua história, como também traz ao debate problemas enfrentados por membros da sua comunidade.


Mais uma vez, percebemos o quão necessário é colocar em pauta a sexualidade, pois não se trata apenas de uma saúde física, mas também psicológica. Mulheres como Karla precisam passar a vida lutando contra a sociedade para, simplesmente, poderem ser por fora, quem são por dentro.




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