"Sou a famosa criança viada"
Iara Cerato abriu a porta de sua casa, onde reside com a mãe e os dois irmãos, com um sorriso enorme no rosto. Cercada pelos cachorros que cuida, ela nos convidou para entrar. Dona de uma risada e energia contagiante, a escritora logo faz a equipe da reportagem se sentir bem-vinda. De cara, já dava para perceber que ela estava disposta a dividir um pouco sobre sua história de vida.
Aos 23 anos, Iara é uma mulher com opiniões fortes. Sendo assim, a conversa sobre sexualidade foi regada de muitos relatos. Estávamos ali para entender como uma mulher lésbica encara, e é encarada, pela sociedade quando o assunto é sexualidade. Saímos com as respostas.
O município de Frederico Westphalen viu crescer uma jovem que, nem de longe, lembra a mulher que é hoje. Iara, durante muito tempo, soube que era diferente das outras pessoas, mas não entendia o porquê. Aos poucos foi percebendo o que a diferenciava, a sua sexualidade.
– Até os meus 12 anos eu mal falava sobre isso, porque eu senti que tinha alguma coisa que precisava esconder. Eu sempre me senti isolada.
As marcas desse silêncio repercutiram no psicológico da escritora, que desenvolveu depressão. Para Iara, esconder a orientação sexual dos pais foi um dos fatores determinantes para a doença, já que, dentro de casa, o sexo não era tema de debate.
Iara conta, com alegria, que na escola a situação era diferente. A educação sexual era um conteúdo constante, desde os anos iniciais. Com o auxílio de psicólogas e assistentes sociais, as professoras orientavam os estudantes conforme a idade. E é aí que a questão surge na vida de Iara.
– Os assuntos trabalhados em aula me fizeram criar coragem para falar com meus pais. A homossexualidade não era tratada como tabu nas aulas e isso ajudou com que eu fosse franca e falasse com eles sobre o assunto.
A mãe da jovem foi a primeira a ficar sabendo e a revelação acabou acontecendo quando Iara estava no meio de uma crise de ansiedade. Para tentar acalmar a filha, ela acabou aceitando o fato. As perguntas vieram mais tarde, com abordagens um pouco indelicadas. Gradativamente, Iara orientou a mãe.
– Expliquei pra ela que não era nada de outro planeta. Ela sempre me disse ‘eu não tenho problema com você, eu tenho problema com a reação dos outros. Eu não sei o que os outros vão fazer contigo’. Já com meu pai foi super tranquilo.
Encarando a sociedade como mulher lésbica
Quando descobriu o prazer ao lado de outra mulher, Iara ficou se punindo. Ao mesmo tempo que tudo parecia certo, ela se questionava sobre o que estava fazendo. O sentimento era ambíguo.
– No começo é algo estranho, mas é como se liberasse algo dentro de ti e tu soubesse que aquilo é natural, que não tem problema. São só os tabus que estão infiltrados na tua cabeça.
Depois de ter perdido a virgindade com outra mulher, Iara logo teve que encarar os desafios que estavam por vir. Nem as próprias amigas compreenderam pelo que ela estava passando.
– Minhas amigas falaram ‘tu acha que perder a virgindade é transar com mulher? Tu só vai perder quando transar com um homem’. Foi bem horrível ouvir isso. Eu pensei ‘não vou mais conversar com mais ninguém sobre isso’.
Muitas pessoas pensam da mesma forma que as amigas de Iara, pois o prazer ainda está ligado aos órgão genitais masculino e feminino e, principalmente, à penetração. A psicóloga Juliana Coutinho explica que, ao falar de relação sexual, as pessoas pensam logo no coito da penetração, mas “existem outras formas de prazer, como o toque, o visual, existem outras formas de prazer que não somente pela relação da penetração”, completa a psicóloga.
Por causa disso, Iara decidiu falar sobre essas questões apenas com profissionais da área, onde, infelizmente, também encontrou dificuldades. Ela considera que as questões relacionadas com a saúde da mulher lésbica ainda são muito complicadas. Iara revela que buscou ajuda de uma ginecologista para se proteger de doenças sexualmente transmissíveis, mas se surpreendeu com as sugestões.
– Os preservativos são criados para mulheres héteros. Chegar numa médica, como foi meu caso, e ela pedir ‘você namora?’ eu disse que sim, e ela perguntou se eu me cuidava, usava anticoncepcional. Eu falei ‘eu namoro uma mulher’ e ela respondeu ‘tem vários métodos como plástico filme, você corta um dedo de luva, você manda fazer uma borrachinha’. Você pagar consulta pra ouvir isso, dá vontade de pular da janela do prédio. Os métodos contraceptivos de mulher para mulher eles não existem, porque são criados pensados nos homens.
Pensando na dificuldade que as mulheres lésbicas e bissexuais encontram para se proteger na hora do sexo, o Programa de Educação Tutorial de Biologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) elaborou um panfleto de orientação para o sexo seguro. Uma das dicas é nunca utilizar o plástico filme como método de proteção, ao contrário do que foi indicado pela ginecologista consultada por Iara. De acordo com as orientações, o plástico PVC é uma membrana semipermeável, sendo assim, sua eficácia como barreira é contestável.
A indústria pornográfica ainda propaga uma ideia falsa de que as mulheres precisam, necessariamente, de um homem na relação para obter prazer. Segundo a psicóloga Juliana Novo Coutinho, as relações entre mulheres ainda são vistas como tabu porque a relação homoafetiva é tida como um fetiche pelo olhar masculino.
– Não há uma possibilidade de que mulheres podem realmente se amar, se gostar, sentir, ter intimidade, namorar, casar, construir família. Então não se permite isso. Até a mulher homossexual é vista com preconceito –, destaca Juliana.
O preconceito também surge em forma de piada por alguns dizeres como: “Você é bonita demais para ser lésbica, que desperdício!”, “Você não sente falta de algo na hora do sexo?” e “Você só é lésbica porque ainda não encontrou um cara que soubesse fazer direito”. Iara também revela que as pessoas costumam achar que, pelo fato de ser lésbica, ela não pode achar homens atraentes.
– Meu corpo não sente atração pelo corpo do homem, não é que eu não ache bonito, mas... pena que são homens. É a questão física mesmo. Quando tu toca numa pessoa, o que tu sente? É essa a diferença.
Daí surge uma pergunta inquietante. O prazer sexual é físico ou psicológico? Para Iara é uma mistura dos dois.
– Não importa o quanto o físico esteja ligado, se você não estiver com a cabeça conectada, leve, apta, querendo aceitar aquilo, não vai acontecer. A tua cabeça decide o que teu corpo vai fazer.
Sexualidade como forma de resistência
A história de Iara se envolve muito com as questões psicológicas, mostrando que o tabu vai muito além das piadas. Esconder a opção sexual por tanto tempo a afetou por dentro, afetou sua saúde, afetou seu psicológico.
Como mulher lésbica, Iara é resistência: mostra para a sociedade que a lesbianidade existe. Sua sexualidade é vista como ameaça, pois escancara que as mulheres não precisam viver uma vida dedicada aos homens para serem felizes. Remando contra a maré, Iara sabe hoje que é dona do seu corpo e dos seus prazeres e, assim, escolheu se amar.
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